Uma reflexão sobre o objeto e a pesquisa sociológica na contemporaneidade
[1]
Gerardo Clésio Maia Arruda[2]


1. Sociologia: uma disciplina polêmica


Há uma questão em que os sociólogos concordam e que permanece desde a sua fundação até
os dias atuais, questão esta que já teve a participação de fundadores e formuladores de teorias fundamentais como Comte, Weber e Durkheim e ainda atrai pensadores contemporâneos como Giddens: não é uma tarefa simples definir o que é a sociologia?

Hoje já não se põe em dúvida se a sociologia é um ramo da filosofia ou uma disciplina do campo das ciências sociais, dissiparam-se as dúvidas referentes ao seu estatuto científico: o fazer sociológico é um fazer científico. Porém, a fluidez com relação às outras disciplinas das ciências sociais e, principalmente, o fato de
que o seu objeto em sua natureza encontra-se em estado permanente de mutação, além do que o investigador sociológico é, quando investiga os fenômenos sociais na estrutura a qual ele está inserido, também parte do objeto de pesquisa.

Além disso, aqueles para quem a investigação sociológica deve servir em primeiro lugar, os cidadãos e os formuladores de políticas públicas, vêem a sociologia como algo que parece querer sempre subverter a ordem, na medida mesma em que faz submergir a lógica de funcionamento das estruturas sociais. Pois, ao tentar descrever a essência dos fenômenos sociais, a sociologia explicita interesses submergidos em suas aparências. Como salienta Giddens, no trabalho Em defesa da sociologia, esta é uma ciência que causa temor, isto porque põem em questão premissas que nós mesmos desenvolvemos sobre nós, premissas que naturalizam nossas ações, hábitos e costumes.

Entretanto, se a primeira vista a sociologia suscita dúvidas tanto naqueles que a fazem, na medida mesma que ainda discutem o seu objeto, como naqueles que são os mais interessados nos seus resultados, porque têm suas crenças colocadas em questão, uma observação mais cautelosa deixa antever que esta ciência passa ao largo dos modismos, pois aquilo que é a raiz de seus problemas – um objeto mutável, de forma cada vez mais acelerada – reclama uma permanente averiguação.

Também, a sociologia se faz necessária em função de sua capacidade de mensurar os efeitos de qualquer política implementada. Portanto, lembrando mais uma vez Giddens: “sociólogos não se desesperem! Vocês têm um mundo inteiro a conquistar ou, ao menos, interpretar.”



2. Da intenção de ser uma ciência particular e sintética à delimitação de seus três objetivos


Definir a sociologia como uma ciência que se pretende particular e que busca compreender o conjunto da sociedade é afirmar que se está diante de uma disciplina que é ao mesmo tempo científica e sintética. Os fenômenos que a sociologia estuda são fenômenos sociais totais, não podem ser compreendidos em si, mas a partir das esferas que formam o conjunto da sociedade (economia, política e cultura). Esta questão se explicita nos três objetivos, salientados por Raymond Aron, que a sociologia se propõe:


1) A definição e análise do social enquanto social;
2) A determinação das características próprias de cada estrutura, ou de todas as estruturas sociais;
3) A localização das diferentes estruturas sociais no curso da história.


Uma rápida análise das proposições teóricas formulados, no conjunto de suas obras, por Durkheim e Weber, possibilita a localização destes três objetivos na base da tentativa de interpretação da realidade. Em Durkheim se percebe as seguintes questões basilares:


1) Define a sociologia pelo caráter específico do fenômeno social, considerado como transcendente às consciências individuais;


2) Estabelece os princípios de uma classificação dos tipos sociais, começando pelas sociedades mais simples (as hordas) e continuando pelas sociedades segmentares simples e as sociedades multisegmentares ou complexas;


3) Por fim, estabelece as diferentes estruturas, umas com as outras, numa continuidade histórica.


Já em Weber, estes três aspectos podem ser especificados da seguinte maneira:


1) Constrói o conjunto da sociedade a partir das relações inter-individuais;


2) Estabelece categorias econômicas, políticas e jurídicas, que lhe permitem definir os principais tipos de estruturas econômicas, políticas e jurídicas;

3) Situa essas diversidades, tornadas inteligíveis, na continuidade do desenvolvimento histórico.


Portanto, nas obras de Durkheim e Weber, provavelmente os mais acadêmicos entre os sociólogos das primeiras gerações, verificam-se as intenções de ser científica e sintética combinadas. Isto ocorre porque ambos dão conta dos três objetivos da sociologia: (I) definição social; (II) análise do consenso social; (III)
localização das diversidades históricas.

Mas é importante anotar que mesmo compartilhando em suas obras a partida da análise do social enquanto social Durkheim e Weber se constituem em duas perspectivas de análise sociológica particulares, mas que, como salienta Berger na obra Perspectivas sociológicas, não são exclusivas, ao contrário são
complementares. Na análise durkheimiana, a definição do social está assentado na premissa de que o social transcende a consciência individual, portanto, é exterior ao indivíduo e se lhe impõe. Com isto, pressupõe-se uma sociologia que abranja todas as ciências sociais e, assim sendo, prevalece a esfera do sintético; já na análise weberiana, a definição do social está ancorada nas relações inter-individuais, portanto, mesmo que se pretenda sintética, prevalece a esfera do científico.


3. A atitude científica na sociologia


Não é exagero afirmar que a máxima de Write Mills de que é o talento imaginoso que faz a investigação sociológica avançar está fadada a se perpetuar juntamente com está ciência. A imaginação neste metier é tão mais necessário quanto enraizado está o investigador em seu objeto. A qualidade do pesquisador e do resultado de seu trabalho está, dentre outras necessidades, ligados à capacidade de se distanciar da sociedade para saber identificar problemas e compreende-los. Esta é a atitude necessária para a investigação sociológica: estranhar aquilo que é familiar.


4. Inteligibilidade, objetividade e subjetividade na pesquisa sociológica


Ao estudar os fenômenos sociais totais, a sociologia produz uma constância dos temas enfocados, contudo, tais temas são observados em suas manifestações concretas, em suas diversidades percebidas na variação do tempo e espaço considerados.

Um exemplo de como se opera esta inteligibilidade é o estudo da participação da mulher no mercado
de trabalho, o mesmo tema pode ser analisado no Brasil, mas a consideração de períodos diferentes induz a produção de resultados que também podem ser diferentes; ou ainda, o mesmo tema estudado no Brasil e na França, considerado no mesmo período, a trajetória da luta feminista nestes espaços pode acarretar
vieses que produziram diferentes formas de inserção da mulher no mercado de trabalho.


Em suma, a comparação é um elemento chave, em termos metodológicos, que permite a inteligibilidade do estudo sociológico. Confrontar a intenção do sociólogo com a do historiador permite se compreender os motivos que levam a sociologia se apoiar na comparação. O historiador é, essencialmente, um observador e
organizador das diversidades sociais; o sociólogo, por sua vez, no exercício de sua atividade constata a existência das diversidades, mos o seu objetivo último é compreendê-los, entender a lógica de seu funcionamento, assim específica tipos de ações, instituições e de estruturas sociais.


Ao buscar esta inteligibilidade através da pesquisa, o pesquisador se defronta com a necessidade de fazer escolhas, pois como afirma Weber a realidade é extremamente complexa para ser apreendida em sua realidade, isto leva o pesquisador tanto a não perceber variáveis influentes na determinação do fenômeno, como a de ter que, diante da dificuldade de manuseá-los, optar por aquelas que segundo suas preferências são as hierarquicamente mais importantes. Percebe-se, assim, que o pesquisador é sujeito ativo na interpretação que busca trazer a tona a ordem inscrita na determinação dos fenômenos, desde a escolha até ao grau de importância dada a cada uma das variáveis intervenientes.


Aí se encontram os fundamentos da máxima weberiana de que não há uma única interpretação possível,
nem uma única forma de interpretar o fenômeno enfocado. Como afirma Raymond Aros, ao sintetizar o pensamento de Weber acerca da pesquisa social: o verdadeiro perigo está em que os sociólogos são sempre parciais, estudam apenas uma parte da realidade pretendendo estudar o todo.



5. Relação da sociologia com outras disciplinas das ciências sociais


Ao se discutir os limites e as interfaces da sociologia com a filosofia e outras disciplinas das ciências sociais se percebem elementos que ajudam a compreender grande parte dos seus problemas, bem como indícios que auxiliam na compreensão dos objetivos que ela se propõe.


Em primeiro lugar, é importante salientar que a sociologia surge num cenário em que já
estavam consolidadas, no meio acadêmico, algumas disciplinas das ciências sociais, como por exemplo, a economia política. Os precursores a apresentavam para a comunidade científica como instituidores de uma disciplina que trazia novidades. Tais novidades podem ser resumidas no seu rigor científico e a sua
atuação num espaço fronteiriço às outras disciplinas, fazendo com que a autonomia da sociologia se localizasse tanto no fato de estudar fenômenos não contemplados pelas outras ciências como porque dialoga com todas elas, assim, se constituiria num ramo que se formava a partir destas ciências, mas, sobretudo,
para além delas.


Confrontada com as outras disciplinas das ciências sociais, o que se percebe é que prevalece
na sociologia uma preocupação com as questões mais diretamente vinculadas ao cotidiano dos indivíduos. Giddens cita, por exemplo, as seguintes questões: o desenvolvimento do urbanismo moderno, crime e punição, gênero, família, poder social e econômico. E Raymond Aron chama a atenção para a preocupação da sociologia com as relações entre determinados setores da realidade, como a economia e a política, que não eram objeto de nenhuma outra disciplina das ciências sociais.


Mas aí também se pode objetar que não há nesta preferência algo que possa distinguir a sociologia como uma ciência possuidora de um objeto com recorte perfeitamente definido e particular. Um confronto da sociologia, em busca de verificar suas pretensões, com a filosofia e a economia política contribui para o esforço de definir a sociologia e seu objetivo.


Pode-se afirmar da filosofia que é um conhecimento que se pretende, o que é realizado no seu desenvolvimento, afastar-se das particularidades, procura o fundamento último das coisas visando conhecer o todo, ao tematizar as ciências o faz a partir daquilo que se encontra na base de todas as suas articularidades, que é a essência. A sociologia, por sua vez, afasta-se deste conhecimento na medida em que isola os fenômenos para poder estudá-los. Por outro lado, ao se comparar o conhecimento sociológico com o das ciências econômicas, se verifica que a economia estuda somente os fenômenos concernentes e instituidores das trocas mercantis, portanto, um segmento da realidade social; enquanto a sociologia estuda os fenômenos inseridos na realidade social e com a intenção de compreendê-la em sua totalidade.




6. A produção do conhecimento sociológico a partir da história e da antropologia.



Ø A análise sociológica recorre, basicamente, aos seguintes campos do conhecimento:



Ø A história e Antropologia como áreas de conhecimentos adotados na apreensão de objetos específicos que a sociologia exige como de sua competência, em ordem decrescente de tamanho e complexidade:


Sociedades
- A sociologia proporia questões da seguinte tipo: existe qualquer prova de que tipos específicos – por exemplo, os grandes impérios – tendem a durar um período específico de tempo?


Instituições
- A sociologia proporia questões do seguinte tipo: Quais as características que todas as instituições têm em comum?


Relações sociais
– A família é constituída por muitos conjuntos de realções – entre homem e mulher, pai e filho, irmão e irmã, avô e neto. Tais relações podem ser estudadas particularmente, bem como têm alguns traços comuns.



OBS: O ESTUDO DESTES OBJETOS SE DÁ ATRAVÉS DA COMPARAÇÃO, PORTANTO, SE FAZ NECESSÁRIO RECORRER A HISTÓRIA E A ANTROPOLOGIA PARA UMA COMPREENSÃO EM TEMPOS E ESPAÇOS DISTINTOS



7. Sociologia clássica: um diálogo com a modernidade


O desenvolvimento tecnológico que possibilitou as viagens marítimas a longas distâncias e, por conseguinte, as rotas comerciais que aproximaram o ocidente do oriente, a descoberta do novo mundo e a acumulação de capital por empreendedores, que se lançavam na aventura das novas oportunidades de negócios, são os elementos propiciadores aos questionamentos realizados pelos espíritos inquietos ainda sob o absolutismo do poder político dos reinados e da autoridade religiosa da igreja católica. No século XVI, mais precisamente em 1513, Maquiavel conclui sua obra O príncipe, sob o calor das transformações que se iniciavam e iriam perdurar nos dois séculos seguintes. O primeiro tratado político moderno estava voltado para orientar o príncipe a conquistar e, principalmente, manter o poder numa época de incerteza, em que se fragilizava o poder católico, deixando aos homens a responsabilidade pela gestão da coisa pública. A obra de Maquiavel é um exemplo de que os momentos de crise proporcionam o surgimento de novas idéias, a insegurança do novo e o desconhecimento das causas que abalam as instituições e o seu funcionamento desafiam os espíritos e reclama respostas. O século XVII assiste a passagem do homem de um ser sob desígnios para um ser construtor de si mesmo. Descartes funda o racionalismo que coloca o homem no centro do universo, dotado de inteligência, pensante, transformador do mundo e responsável por sua história.


Deste período até o século XVIII a humanidade produziu de forma intensiva pensamentos revolucionários, alterou o saber filosófico e científico, promoveu o desencantamento do mundo, afastou Deus da natureza e do poder político e colocou o homem como o único responsável pelos desafios da sobrevivência no cotidiano, portanto, deixou-o verdadeiramente à frente do seu destino. As mudanças se iniciam na economia, passam pela filosofia, se fortalece na política e se incrusta na cultura, no mundo vivido. A França do século XVIII foi o palco principal da institucionalização destas mudanças, o movimento revolucionário aí ocorrido, expulsou a nobreza da política, reduziu o espaço do clero aos limites dos templos e aos cuidados dos indivíduos no concernente à espiritualidade e criou as condições para um fazer histórico a partir da relação da burguesia e do proletariado.


A estrutura mental aí inaugurada se opõe a anterior (do ancién regime) ao conceber tudo como em transformação e ao dotar os indivíduos da capacidade de duvidar de tudo, portanto de ser capaz de pensar e de criar sempre algo novo. O princípio que rege o pensamento é, agora, metódico. A dúvida e o rigor do pensamento são s bases que proporcionam ao homem racionalizar a natureza, a cultura e a espiritualidade. Com isto se removeu todos os limites e barreiras à sua capacidade criadora, os obstáculos que se lhe impõe se transformam em metas a serem ultrapassadas. O “projeto iluminista” põe o homem no comando do seu destino ao exigir sua liberdade, dotando-lhe da capacidade de pensar sobre tudo o que existe, reformulando-o ou criando algo novo.


O pensamento sociológico surge com o objetivo de compreender as transformações que constituíram a modernidade, a partir das mudanças econômicas, portanto, a sociologia mantém uma constante tentativa de dialogar com a sociedade capitalista em suas diversas fases.



7.1. ASPECTOS DA MODERNIDADE


7.1.1. ECONÔMICOS


ØSurgimento do trabalho assalariado
ØDesorganização da economia rural
ØOrganização de uma economia urbano-industrial
ØSubstituição do trabalhador artesanal pelo trabalho coletivo
ØComplexificação da economia (produção-distribuição)



7.1.2. SOCIAIS


ØFluxo migratório campo-cidade


ØAglomeração urbana


ØInserção do trabalho infantil


ØAmpliação da violência (alcoolismo, prostituição, criminalidade, surtos de epidemia)



7.1.3. POLÍTICOS


ØSurgimento de duas classes sociais (burguesia e proletariado)




BIBLIOGRAFIA


ARON, Raymond. Dezoito lições sobre a sociedade industrial. Brasília: Martins Fontes, 1981.


GIDDENS, Anthony. Em defesa da sociologia: ensaios, interpretações e tréplicas. São Paulo: UNESP, 2001.


BERGER, Peter L. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis: Vozes, 1986.


WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez, 1993.


Bibliografia:


JOHN, Gabriel. Sociologia: para ler os clássicos. Rio de Janeiro: Azougue, 2005.


QUINTANEIRO, Tânia. Um toque de clássicos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.



[1] Notas de aula elaboradas para as disciplinas de introdução às Ciências
Sociais e de Introdução à Sociologia.

[2] Economista, Especialista em Geografia Humana, Mestre e Doutor em Sociologia.
Professor da Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e da Faculdade Christus.